Viver após a Lesão Medular
A assistência médica aos doentes com lesão medular evoluiu muito na última metade do século 20. Até à altura da segunda guerra mundial, a maior parte desses doentes morria numa fase aguda da lesão, habitualmente por intercorrências infeciosas nomeadamente urinárias, cutâneas e pulmonares. O quadro mudou radicalmente quando, a exemplo do que Guttmann realizou em Inglaterra na década de 40, se começaram a abrir Hospitais e Centros especificamente vocacionados para o tratamento das lesões medulares, um pouco por todo o mundo. Este foi o ponto de viragem que permitiu melhorar a sobrevida dos doentes que é hoje, depois de ultrapassada a fase aguda, próxima da população geral. O que acontece atualmente, é que muitas destas pessoas se reintegram familiar e socialmente e por isso legitimamente procuram ter uma existência tão próxima quanto possível do normal, incluindo nos seus projetos de vida, uma vida sexualmente ativa e descendência.
A libido é sobretudo um processo psicológico e por isso não se encontra alterada, nestes indivíduos, por causa da lesão.
Na mulher paraplégica ou tetraplégica há menos obstáculos orgânicos para as relações sexuais. No entanto os obstáculos psicológicos podem ser bem maiores, pela incapacidade de sentir, de participar e pela imagem corporal. No entanto como todo o corpo pode ser uma zona erógena, a sensação de prazer pode ocorrer nas áreas com sensibilidade integra. O objetivo de ser mãe não é difícil de conseguir uma vez que, passado um período inicial de possível amenorreia, os ciclos menstruais e a capacidade reprodutora retornam ao normal. As dificuldades ocorrem sobretudo na gravidez pela necessidade de suspender medicação, fundamental para controlo de algumas alterações como por exemplo o tónus (espasticidade) e disfunção do trato urinário inferior.
O parto pode necessitar de anestesia epidural, cesariana ou ocorrer de forma natural, dependendo do nível e do tipo de lesão.
Para o homem que sofreu uma lesão medular, este processo é como veremos mais complicado, uma vez que a lesão neurológica apesar de não interferir na libido interfere com a ereção e com a ejaculação. Há várias soluções para melhorar a ereção seja em tempo ou eficácia, mas o principal obstáculo, a uma relação plena, são as alterações sensitivas e a as alterações ejaculatórias. No entanto a sensação de orgasmo pode ocorrer. Nos casais em que é o homem que tem a lesão medular, por vezes as mulheres referem uma melhoria dos atos sexuais, pela maior envolvência emocional e aumento do tempo de inter-relação, passando, nestes casos, a relação a ser menos falocêntrica.
Num individuo que sofreu uma lesão medular a capacidade biológica para ser pai, sem apoio médico, fica reduzida a 1% devido à disfunção ejaculatória e à má qualidade do esperma.
Há vários fatores até hoje descritos que, sozinhos ou em combinação, podem contribuir para reduzir a qualidade seminal: hipertermia testicular, infeção urinárias recorrentes, medicamentos potencialmente tóxicos para o esperma, histologia testicular anormal, alterações hormonais e anticorpos espermáticos.
A capacidade de obter uma ejaculação anterógrada está, nestes indivíduos, habitualmente comprometida. O grau de compromisso depende de se tratar de uma lesão completa ou incompleta, central ou periférica. Em geral a disfunção ejaculatória ocorre em 85 a 90% dos homens com lesão medular.
Esta disfunção é muito frequente porque, para que a ejaculação ocorra é necessário que os dois centros medulares, dorso-lombar e sagrado, sob controlo cerebral, estejam íntegros. Facilmente se entende que, tanto uma lesão medular como uma lesão nervosa periférica, qualquer que seja a etiologia, pode originar disfunção ejaculatória.
Felizmente é possível ultrapassar esta dificuldade, na maioria dos casos, com recurso a duas técnicas: a vibração peniana (efetuada com um vibrador especificamente desenvolvido para este fim) e a electroejaculação, escolhidas de acordo com o tipo de lesão. Apesar da ejaculação poder ser induzida em quase 100% dos TVM por vibração e electroejaculação, a qualidade do esperma assim obtido é má e obriga, na maioria dos casos, a recorrer a técnicas de reprodução assistida, mais ou menos sofisticadas, em tudo idênticas às efetuadas em casais inférteis, por outras razões.
Apesar da má qualidade do esperma, a percentagem de sucesso das técnicas de reprodução, nestes indivíduos é idêntica à da população geral, que delas necessita.
Até há poucos anos ter filhos não passava de um sonho para a maioria dos homens que, por lesão neurológica ou outra, não tivessem ejaculação. Hoje dispomos de técnicas que permitem a obtenção de esperma em quase todos os homens, que por várias razões, não conseguem ejacular. Esse esperma pode depois, de acordo com as suas características, ser utilizado pelas várias técnicas de reprodução assistida.
O sonho tornou-se realidade.
Profª Doutora Maria João Andrade, Chefe de Serviço de Fisiatria do Centro Hospitalar Universitário do Porto
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