Transidentidades- os desafios da travessia
O conceito de género tem sido construído socialmente através de símbolos, conceitos e formas de conduta. A divisão entre masculino e feminino determinou o binarismo de género, crença construída nesta dualidade e que deixa de fora as identidades trans.
Haveria uma relação direta entre sexo (biológico) e género (psicossocial).
O termo trans engloba todas as pessoas que não se identificam com o sexo que lhes foi atribuído à nascença. O cissexismo será então a ideologia resultante desta visão dicotómica dos sexos.
Não há uma sexualidade universal, dizia Foulcaut e nas últimas décadas têm-se falado muito das questões da identidade sexual e da sua diversidade. Movimentos sociais, artísticos e ativistas dos direitos humanos quiseram acabar com o binarismo de género, e, de forma transgressora, legitimar e dar visibilidade às identidades não normativas.
Na última década as pessoas trans têm tido maior visibilidade devido ao trabalho das associações que as representam e a alguns meios de comunicação social. A formação de grupos online também tem permitido o reconhecimento de outros membros da comunidade e da possibilidade de identificação positiva.
A comunidade trans, tratada até há poucos anos como sofrendo de doença mental e por isso incluída dos manuais psiquiátricos, tem-se libertado desse tabu. Temos observado um processo de despatologização universal, que teve a máxima expressão científica na última classificação das doenças da OMS (2022). Esta condição saiu do capítulo das doenças mentais e passou para outras condições de saúde.
Em Portugal, em 2018, surgiu a Lei de autodeterminação de género, permitindo que as pessoas trans possam mudar o seu nome e marcador de sexo no Registo Civil, sem precisarem de um documento médico. Os direitos destas pessoas não deviam estar sujeitos a requisitos clínicos.
Apesar da existência da lei, ainda há muito para melhorar quer na sociedade quer a nível das instituições, para que as pessoas sejam reconhecidas na diferença e tratadas sem discriminação.
As histórias das pessoas trans estão pontuadas por sentimentos de rejeição que, refletem ora o desconhecimento de pessoas de género discordante ora a verdadeira transfobia.
Este impacto social preconceituoso, leva a vivências de não existência e não pertença, com todo o sofrimento que lhes é inerente. A ansiedade, a depressão e a ideação suicida são mais frequentes e diretamente relacionadas com o estigma ainda existente. Dados científicos apontam para o facto de estes sintomas diminuírem ou desaparecerem após o início do processo de transição.
Numa sociedade onde reina a cisnormatividade, existem barreiras difíceis de transpor, e que prejudicam globalmente a pessoa trans criando dificuldades na escola, no emprego e no acesso à saúde, entre outras coisas.
A família também funciona em muitos casos com um obstáculo, necessitando de apoio par fazer o seu "coming-out". As famílias têm muitas vezes que incorporar um discurso mais flexível em termos de género. A aceitação precoce da situação protege muitas patologias secundárias.
As pessoas trans podem ser binárias ou não-binárias. Podem querer ou não efetuar um processo de afirmação de género, sendo para isso necessária uma abordagem multidisciplinar, que integra consulta de sexologia, endocrinologia, ginecologia, ORL e cirurgia plástica. Cada pessoa decide como fazer esta travessia e adequar as suas características físicas à sua vivência de género.
O acesso à saúde tem melhorado gradualmente, mas ainda há necessidade de uma resposta mais célere e mais adequada ao número crescente de pedidos.
Termino com 2 poemas de André Tecedeiro, poeta, que se autodefine como um homem trans:
Não há solidão
comparável
à de vivermos longe de nós
___________________________________
Eu amava tanto os meus pais
Que para lhes agradar, disse que não existia.
E eles acreditaram
Dra. Zélia Figueiredo, Psiquiatra
Kommentarer