SEXUALIDADE E CANCRO
A dimensão sexual do doente oncológico é muito importante.
E muitas vezes esquecida. Pelos cuidadores. Por todos.
É que as repercussões sexuais da doença oncológica e dos seus tratamentos foram, durante muito tempo, consideradas como secundárias, não importantes, negligenciadas.
Só que a doença oncológica continua a ser um enorme problema de saúde pública, sendo a segunda causa de mortalidade europeia, logo atrás das doenças cardiovasculares.
Contudo, têm sido feitos imensos progressos a esse nível: a sobrevivência tem vindo a aumentar e tem-se tentado diminuir cada vez mais os efeitos secundários e sequelas ligados à doença oncológica e seus tratamentos.
As repercussões do processo oncológico sobre a sexualidade, entre outros, têm vindo portanto a adquirir uma maior atenção.
De facto, todo o tipo de cancro pode causar problemas na vida sexual do doente, e não apenas os cancros dos órgãos genitais e da mama.
E isso pode implicar ou uma perda da função sexual ou uma exacerbação de problemas da sexualidade já anteriormente existentes.
As repercussões não se limitam ao doente propriamente dito. Estendem-se ao casal e têm impacto na família alargada e na área socioprofissional.
O paciente pode ter dificuldade em abordar esta temática mas é fundamental que lhe seja prestada uma informação atempada e ajustada ao processo oncológico e ao paciente e suas circunstâncias.
Em geral e no que diz respeito aos dois sexos, as queixas mais frequentes são a diminuição da líbido, a ausência total de desejo sexual, a perda de interesse pela sexualidade, o aumento de peso, as dores articulares, os afrontamentos, os suores noturnos, entre outros.
Na mulher, predomina a dispareunia, a secura vaginal, a irregularidade dos ciclos menstruais, a amenorreia, as perdas vaginais, o prurido vaginal.
No homem, é preponderante a disfunção eréctil, a anorgasmia, a anejaculação, a incontinência urinária.
A imagem corporal e a relação com o corpo são frequentemente marcadamente atingidas – no próprio, no casal. A intimidade pode sair profundamente ferida. A relação sexual também. E se a tudo isto juntarmos ansiedade e dificuldade na comunicação, tudo se torna muito complexo.
Para além do tipo de cancro, da faixa etária do paciente, das suas circunstâncias ditas biopsicossociais e espirituais, dos apoios sociofamiliares e institucionais, entre outros, há a considerar as alterações da sexualidade ligadas a tratamentos oncológicos específicos.
De salientar, novamente, que as perturbações da sexualidade vão muito além do âmbito dos órgãos sexuais propriamente ditos, sejam quais forem os tipos de tratamentos oncológicos e envolvem a pessoa no seu todo.
Comecemos pela CIRURGIA: no que diz respeito à mulher, a mastectomia com ou sem esvaziamento axilar, a histerectomia, a cirurgia vaginal, a exenteração pélvica, as ostomias, as cicatrizes,…, podem não só ser um sério obstáculo à relação sexual propriamente dita como também ditar alterações marcadas da imagem corporal, vivenciadas como perdas muito importantes. Não podemos esquecer a perda de zonas erógenas (a pele é o nosso maior órgão sexual), o comprometimento do prazer, do orgasmo. E a perda da feminilidade. E o longo e delicado caminho posterior na recuperação possível do que se perdeu. No homem, temos sempre em perspetiva a disfunção eréctil, a impotência, os problemas da ejaculação (ausência, ejaculação retrógrada, hemospermia, ausência de ejaculação), a ausência de orgasmo, a dor, a incontinência urinária. O impacto de tudo isto na forma como o homem se sente e vê e se relaciona. Em ambos, a importância da recuperação/reabilitação, física e emocional.
No que diz respeito à QUIMIOTERAPIA, vamos ter os efeitos secundários sistémicos dos medicamentos quimioterápicos – em particular a fadiga, as náuseas, os vómitos, a anorexia, as alterações ponderais, as alterações da pele, do cabelo, das unhas, das mucosas… A maior probabilidade de infeções ou de hemorragias pode também limitar a vivência de uma sexualidade plena durante muito tempo. Na mulher, de novo os afrontamentos, os ciclos irregulares, a secura e atrofia vaginais, as alterações hormonais. No homem, o pesadelo da disfunção eréctil.
Também a RADIOTERAPIA consegue perturbar a sexualidade – localmente e à distância, pode afetar a produção de hormonas sexuais, levar a secura e atrofia, lesões na pele e mucosas (inflamatórias, agudas ou crónicas), bridas, estenoses. Por vezes, pode surgir rigidez e contractura. A lesão de nervos e vasos pode também levar, no homem, a alterações da ereção, estreitamento (estenose) da uretra, dor.
A HORMONOTERAPIA tem também um impacto marcante na sexualidade feminina ou masculina, em particular porque se prolonga por 5, 10 ou mais anos. Na mulher, sintomas de menopausa de par com relações sexuais dolorosas e perda da líbido. No homem surgem também perturbações hormonais, com afrontamentos, perda do desejo sexual e alterações da ereção.
Combinando assim o processo oncológico propriamente dito e as repercussões dos vários tipos de tratamentos oncológicos possíveis (há muitos outros, além dos acima descritos, como a imunoterapia, os transplantes, as terapêuticas-alvo,…), com o paciente propriamente dito e suas circunstâncias, vulnerabilidades, fase do ciclo de vida, podemos adivinhar o fortíssimo impacto sobre a sexualidade do mesmo, não podendo esta ser ignorada nem tão pouco mal abordada ou abandonada.
Não podemos ainda esquecer que, ao longo de todo o processo, temos os fatores psicológicos (emocionais, cognitivos, comportamentais) intervenientes em todos os passos. Desde a transmissão da má notícia, o diagnóstico propriamente dito, o medo dos tratamentos, a angústia antecipatória antes do resultado de cada exame complementar de diagnóstico, o medo da recidiva, as questões ligadas à fertilidade (quando se colocam), entre outras. Há uma alteração de papéis, um (des)equilíbrio rompido, uma negação, uma hipervigilância, uma adaptação imprescindível a rotinas diferentes, a luta pela vida, pela sobrevivência.
Fundamental manter o diálogo consigo próprio, no casal, em família, na comunidade, com os cuidadores formais e informais, já que a sexualidade não pode nem deve ser colocada em segundo plano se o paciente a entende como essencial. Afeto, compreensão, paciência e tempo. E apoio psicoterapêutico e psicofarmacológico especializado, podendo até surgir quadros ansiodepressivos adaptativos/reativos a uma nova realidade ameaçadora. É preciso sempre ter em atenção que nem sempre é fácil falar de sexualidade, de intimidade, de afetividade, de cumplicidade numa altura em que se luta pela vida. Mas fará sempre sentido, sempre que o paciente o entender, devendo haver tempo e abertura para esse diálogo, o que, sabemos, nem sempre é fácil.
Uma atenção especial para as modificações da imagem corporal, que podem ser profundas e marcantes – a alopécia, a perda/aumento de peso, a modificação ou perda de uma parte do corpo (amputações), os cheiros e ruídos (ostomias), a incontinência urinária e suas vicissitudes, as cicatrizes,… pode levar até a uma perda de identidade, isolamento social, recusa de intimidade, sentimento de incapacidade de ser-se amado. É fundamental intervir precocemente, ajudar na adaptação a uma nova realidade corporal, preparar uma reconstrução mamária ou do trânsito intestinal, quando possível, e continuar a cuidar quando tal não for possível. Desmistificar, desdramatizar, favorecer a expressão de sentimentos, combater os mitos e as falsas crenças, reaprender a viver com uma nova imagem corporal e incorporá-la na vida futura. Pode haver possibilidade de reconstrução, de próteses… ou não. É preciso ser-se claro sem ser duro, abrir janelas onde antes havia portas, construir por vezes uma nova sexualidade. O poder da aceitação. Uma incontinência urinária pode ser reabilitada total ou parcialmente. Pode continuar-se a ir à praia com um biquíni adaptado a uma ostomia invisível para os outros. Há as próteses capilares, uma maquilhagem adaptada, uma nova forma de vestir novas roupas largas e livres. Uma boa comunicação, sempre.
A importância de manter uma atividade física adaptada às limitações existentes é fundamental – reencontrar alguma energia perdida para uma menor fadiga, adaptar a alimentação, estabelecer/renovar relações sociais. Para uma boa auto estima, uma boa imagem de si em todos os sentidos. Mesmo nas novas posições sexuais a adotar na intimidade com o outro, em função da nova anatomia, fisiologia, mobilidade, flexibilidade.
Não podemos esquecer o possível efeito do processo oncológico (cancro e tratamentos) na FERTILIDADE. Há muitos fatores envolvidos. E muito a fazer, antes e depois. No durante, poderemos ter de falar de contraceção, quando a toxicidade dos tratamentos oncológicos a isso obrigar. E aí teremos a sexualidade e a fertilidade intimamente ligadas pela intimidade (ou não). Por vezes o desejo de um passado que se quer projetar num futuro não é possível no presente. Novamente o tempo e sua importância.
Em conclusão, a saúde sexual deverá fazer parte integrante da qualidade de vida do doente oncológico. É importante abordar tudo isto, não só pela esperança de vida aumentada mas também pelo aqui e agora, se o paciente o entender. Há por vezes necessidade de o acompanhar no luto por uma sexualidade perdida e posteriormente na construção da sexualidade possível. É fundamental não esquecer esta área. Abordar a sexualidade com a precocidade possível, ao ritmo do paciente, de acordo com orientações clínicas e especializadas que já existem e que fazem parte da chamada OncoSexologia – imprescindível em cada departamento oncológico. A dimensão sexual do paciente oncológico será assim salvaguardada. Há muito ainda a fazer. Será com certeza feito.
M. Assunção Tavares, Médica Psiquiatra
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