Sexo e Agressividade: diálogo de prazeres
Com frequência, na abordagem do sexo e da sexualidade no espaço mediático um dado importante fica esquecido: pulsão sexual e pulsão agressiva estão sempre presentes, na dinâmica individual e na do casal, em doses variáveis. Refiro-me a graus de agressividade variáveis, no contexto de uma relação consentida. Evidentemente, o consentimento não é um cheque em branco, pode sempre ser retirado ou negociado durante o ato sexual.
Há inúmeros exemplos de relações sexuais violentas que começam com consentimento de ambos e que acabam mal.
Antes de prosseguirmos, importa dizer que agressividade não é sinónimo de violência, a violência é a má gestão da agressividade, ou, se quisermos, é a agressividade maligna. É da agressividade (benigna), não da agressão, que vem a garra e a determinação essenciais à vida. Ao não distinguir uma coisa da outra, corre-se o risco de se reprimir a energia agressiva positiva por medo do seu, fantasiado, potencial destrutivo, com consequentes danos pessoais, profissionais e sociais.
Diria que fantasias sádicas ou masoquistas fazem parte da sexualidade de muitas pessoas. É tudo uma questão de grau e de passagem (ou não) ao ato. Entre a palmada e as queimaduras, entre os olhos vendados e o flagelo, entre o puxão de cabelo e a perfuração do corpo, entre o amarrar-se ou ser amarrado e a asfixia autoerótica (asfixiofilia) que pode levar à morte, há níveis distintos de gravidade no jogo sexual interno do individuo e nos riscos associados.
Neste momento estarão a pensar: seremos todos perversos? A resposta é não, mas, de forma um pouco simplista e provocatória, diria que podemos olhar para os cenários desviantes, retiramos-lhes uma boa dose de intensidade e encontramos a chamada normalidade. Na maior parte dos casos, a diferença entre o sexo dito normal e o desviante é uma diferença quantitativa e não qualitativa. (Estou a excluir desta análise algumas bizarrias pouco representativas). Esta é, aliás, uma das grandes dificuldades da sexologia: distinguir comportamentos sexuais normais e patológicos.
Um parêntesis para lembrar que em 2019 a OMS retirou o sadomasoquismo da classificação de diagnósticos psiquiátricos na CID-11, desde que haja consenso.
Além da intensidade, há outra diferença entre este tipo de comportamentos numa relação sexual dita normal e numa relação sadomasoquista: a centralidade do comportamento. Nas relações não sadomasoquistas estes comportamentos surgem como um complemento, um picante extra, para potenciar o prazer; no sadomasoquismo estes comportamentos são o centro do prazer, nalguns casos condensam todo o prazer.
O prazer sadomasoquista é um exemplo extremo de como dimensões distintas (até opostas, no imaginário social do sexo associado ao “fazer amor”), refiro-me à excitação sexual e à dor, se fundem e confundem. De tal maneira que, nestes casos, agredir ou ser agredido pode ser entendido como amar e ser amado, sob a forma de estimulação erótica.
E não é apenas a dor o motor da excitação sexual (nalguns casos essa será mesmo uma questão menor), a humilhação (praticada ou sofrida), para uns, e a perda de controlo/controlo absoluto, para outros, são condimentos predominantes na dinâmica sadomasoquista.
Olhemos para dentro de duas dessas dinâmicas.
Pessoas da linha depressivo-masoquista só são capazes de fruir uma relação sexual se esta implicar passar por uma situação de sofrimento, real ou simbólico. O prazer sexual é sobretudo o prazer da “justa” (auto)punição por fantasias censuráveis.
Por exemplo, há quem se “castigue” promovendo, masoquisticamente, um ménage a trois, em que observa o outro amado a ter relações sexuais com um rival, como condimento essencial ao prazer sexual.
Outra hipótese é que algumas práticas sadomasoquistas funcionem como uma evasão do Eu, uma compensação face às exigências da vida, sejam os papeis de género ou a competição profissional. Por exemplo, alguém que exerça funções de chefia, às vezes uma chefia autoritária, com grande responsabilidade e tomadas de decisão importantes, pode sentir a necessidade de se compensar com uma postura submissa e de total perda de controlo na cama.
Resumindo, diria que a atividade sexual contém sempre uma dose de agressividade, num espectro que pode ir do uso da agressividade ao serviço do erotismo, passando pelo uso do erotismo ao serviço da agressão, até à perversão total em que o erotismo desparece e apenas a agressão interessa.
Uma nota (moralista?) final.
Parece que a atividade sexual acompanhada de boas doses de agressividade está em crescimento. A isso não será alheio o consumo crescente de pornografia, assim como o facto de muitos jovens fazerem uma parte da sua educação sexual, absorvendo os estereótipos encenados no ecrã.
Estalos na cara, garganta profunda, cuspidelas, agressões verbais, simulações de violação ou de estrangulamento, são guiões habituais da pornografia, onde se cultiva a normalização da violência contra a mulher e a sua objetificação. Este é um ponto importante. Hoje, a vida sexual da maioria das mulheres é bastante mais satisfatória do que no passado. Porquê? Porque hoje o desejo feminino conta. Porque a mulher deixou de ser apenas objeto de desejo para ser também sujeito de desejo. Com este movimento, a masculinidade e a virilidade já não valem de per si, mas apenas no contexto da relação. É preciso estar atento aos desejos, aos ritmos e às necessidades delas. Era bom que este processo evolutivo rumo à igualdade não fosse bloqueado por imagens de mulheres exclusivamente dadoras de prazer, submissas e objetificadas, exibidas até à exaustão pela pornografia.
Não é uma nota contra práticas mais violentas (cada um sabe de si), mas contra preconceitos de género e contra o aprisionamento do sexo e da sexualidade a um modelo estereotipado.
Dr. Pedro Fernandes, Psicólogo Clinico e Psicoterapeuta
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