Os Bastidores da (in)fidelidade
Atualizado: 27 de abr. de 2021
A fidelidade é um comportamento social.
Psicologicamente somos fiéis a nós próprios e o desejo é (naturalmente) polígamo e polimorfo. Sendo assim, a fidelidade pode implicar um conflito entre o desejo e o(s) compromisso(s). Dito de outra forma, por vezes, para se ser fiel aos compromissos é preciso trair o desejo. O belíssimo filme do Clint Eastwood, As Pontes de Madison County, encena isto magistralmente. Francesca (Meryl Streep), depois de ter cedido ao desejo (sexual), está dividida entre manter-se no casamento e na família, abdicando do seu grande amor, ou perder tudo isso e fugir com e para o amor da sua vida. Acredito que a esmagadora maioria das pessoas que viu o filme desejava que ela largasse tudo em nome do amor e da felicidade adivinhada, mas, provavelmente, acabariam por decidir como ela: trair o seu desejo (sexual e amoroso) e manter-se fiel aos compromissos sociais e internos. Quem a pode censurar? Quem a poderia censurar se ela tivesse seguido o caminho inverso? Quem é que ela traiu (mais): o marido, o amante ou a ela?
Há, hoje, uma maior tolerância à infidelidade.
Não significa isto que a censura social tenha desaparecido ou que o sofrimento da descoberta de uma traição tenha diminuído, assim como a culpa do(a) traidor(a). A fidelidade continua a ser defendida pela maioria, mas desde que não implique grandes sacrifícios ou sofrimentos. E não foi sempre assim.
O afrouxamento da censura acerca da infidelidade, sobretudo em relação às mulheres, democratizou-a: hoje, elas traem como eles. E, na maioria dos casos, com a mesma justificação: a necessidade de “arejar a relação” que se deixou apanhar pelo monstro corrosivo da rotina.
Neste processo de igualdade de género vamos, simultaneamente, assistindo a uma decomposição do conceito de infidelidade – fala-se de infidelidade emocional, infidelidade sexual, infidelidade virtual – com impacto distinto na relação.
Pensemos nalgumas questões.
Não há contacto físico, mas há todo o tipo de partilhas íntimas e de investimento emocional. Há traição? Pode ser isto considerado uma relação amorosa sem corporalidade? É possível haver amor sem corporalidade? O filme Her – Uma história de amor - de Spike Jonze é uma boa sugestão de reflexão sobre o tema. Na minha opinião, o personagem interpretado por Joaquim Phoenix estabelece uma relação amorosa (e reparadora da ferida aberta pela recente separação) com um sistema operativo que lhe oferece tudo o que o amor, habitualmente, contém, menos a corporalidade e a exclusividade.
E quando não há contacto físico nem investimento emocional, mas há partilha de conteúdos sexuais, sob a forma de texto, áudios ou de imagens. Há traição?
Qual o grau de gravidade? Superior ou inferior ao exemplo anterior?
Por fim, a questão clássica quando se fala de infidelidade.
Pode-se amar e trair ou só trai quem não ama o(a) parceiro(a)?
Esta questão tem sempre associada a ideia de que a fidelidade é sinónimo de amor, mas, como sempre, a realidade é bastante mais complexa e avessa a generalizações.
Se há pessoas que não amam o(a) parceiro(a), mas que são incapazes de trair pela fidelidade à fidelidade prometida ou devido ao seu tribunal interno que não tolera “leviandades”; também há pessoas que traem pelos mais diversos motivos e, alguns deles, sem beliscar o amor que sentem por aquele com quem estão comprometidos.
Neste último caso, a traição pode surgir porque: se apaixonou por um terceiro sem deixar de gostar da pessoa com quem se está comprometido; como uma “solução” para preencher carências afetivas ou sexuais; uma tentativa de reparação narcísica para se sentir desejado, para afastar o medo do desamparo ou negar uma imagem castrada de si; como uma retaliação a uma (suposta) traição ou desamor; por vezes, é a cultura a exercer a sua pressão com narrativas de género - “homem que é homem deve ter amantes” -; por fobia ao compromisso; como ansiolítico para uma crise de meia idade; pela busca de certas práticas sexuais que (por censura interna ou externa) não se pode ter com o(a) parceiro(a), etc.
Resumindo, o estado da relação amorosa poderá ser um fator de proteção ou de risco para a infidelidade, mas não há nexo de causalidade boa relação/amor = fidelidade VS má relação/desamor = infidelidade.
Como vimos, há motivações, conscientes e inconscientes, que podem estar para lá do estado da relação.
Além disso, há poderosas dinâmicas inconscientes em movimento no interior de todos nós: há uma sexualidade infantil sempre presente e, frequentemente, negada, há identificações familiares impregnadas no funcionamento de cada um, há um corpo carregado de significados, há cicatrizes que a vida tatuou, há o momento histórico e os códigos de género, mais ou menos repressores, e, como se tudo isto já não fosse suficientemente complexo, há mistério.
O amor e o sexo contêm sempre um quantitativo de mistério que nenhuma ciência sexual ou construção cultural conseguirão eliminar.
Mas não se assustem, a fidelidade não está em vias de extinção.
O desejo de sermos únicos e insubstituíveis na vida do outro, a satisfação sexual e/ou amorosa alcançada, o projeto de construção a dois ou alargado à família, o medo do sofrimento do outro, a imagem de uma relação idealizada que não pode ser danificada, o medo da perda ou a censura interna, põem freio ao desejo.
Quando conseguem...
Dr. Pedro Fernandes, Psicólogo Clinico e Psicoterapeuta
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