Onde fica a perversão?
Ao longo dos tempos, o conceito de perversão tem estado associado a diversos quadros sintomáticos.
A sexologia do final do século XIX e início do século XX estava ancorada no pressuposto de que o objectivo exclusivo da sexualidade humana era a reprodução.
Toda a prática sexual que fugisse a este ditame foi detalhadamente rotulada, criando uma enorme diversidade de desvios: perversão, narcisismo, autoerotismo, sadismo, masoquismo, etc. Apenas as relações amorosas heterossexuais com fins reprodutivos escapavam ao rótulo de desviante.
Era a época da psicopatia sexual de Krafft-Ebbing.
Neste contexto, os primórdios da sexologia foram marcados pela discussão hereditariedade versus meio: as perversões seriam inatas ou adquiridas?
Como se compreende, o olhar estava fortemente contaminado.
Eram inúmeros os sexólogos que, sendo eles próprios homossexuais, como Ulrichs, Symonds e Hirschfeld, defendiam que a perversão era congénita. Desta forma, pretendia-se acabar com os preconceitos e as criminalizações do amor entre pessoas do mesmo sexo.
Se a homossexualidade tivesse a chancela da natureza, não poderia ser punida.
O problema é que a busca de proteção na biologia, procurada por alguns sexólogos homossexuais, representava a negação dos funcionamentos psíquicos complexos que acompanham cada um de nós. Era a negação da subjetividade do sujeito.
O cenário complicou-se, para a teoria vigente, quando esta bateu de frente com a realidade. Muitos dos perversos invertidos eram pessoas com destaque social e intelectual, ou seja, estavam longe de poderem ser considerados degenerados, logo, era difícil considerar o homossexual como um degenerado, por natureza.
Nesta altura, mais do que o sexo do parceiro sexual, era a transgressão aos “naturais” códigos de género que constituía desvio. Não que a homossexualidade fosse considerada adequada, mas, nesse tempo, vários sexólogos faziam a distinção entre perversão e perversidade. Isto é, um homem que penetrasse outro homem estaria a cometer um ato perverso, mas estaria a ser normal na sua essência “ativa”.
A perversão estaria no homem que, não respeitando o código de género, demonstrasse efeminação, travestismo ou preferência por ser penetrado.
É com a entrada em cena da psicanálise que se dá a mudança no foco: a análise passou a incidir na escolha do objeto sexual e não tanto na transgressão aos códigos de género.
Anos mais tarde (nos anos 50 do século passado), os relatórios Kinsey ridicularizaram o popular conceito de psicopatia sexual, já que, de acordo com as entrevistas realizadas, a maior parte da população seria sexualmente psicopata.
Ficava claro que a repressão não faz desaparecer o comportamento, obriga-o a arranjar estratégias de sobrevivência.
O travestismo, por exemplo, faz parte da cultura europeia há séculos, como forma de adaptação social. Era uma forma de as mulheres entrarem em locais públicos que lhes estavam vedados ou de homens e mulheres que estivessem numa relação com alguém do mesmo sexo, poderem ter uma vida publica disfarçados de marido ou de mulher.
É minha convicção que algumas das ditas novas sexualidades, de que hoje se fala, sempre andaram na clandestinidade. Esse é, aliás, um dos truques das sociedades que exercem uma censura social demasiado castradora: empurram as sexualidades “desviantes” para um submundo sexual, muitas vezes pouco digno, para depois, os mesmos que os empurraram para lá, lhes apontarem o dedo: “vejam a promiscuidade destes perversos!”
Em jeito de resumo, diria que o desvio já esteve na transgressão aos códigos de género com o foco na atividade-passividade e na masculinidade-feminilidade, já esteve na masturbação e nas homossexualidades.
E hoje, como nos posicionamos perante os sujeitos transgéneros, transexuais, sujeitos não binários e outras nomenclaturas que surgem a cada momento?
Até há pouco tempo estas pessoas eram (?) consideradas desviantes, sofriam de uma disforia de género, uma perturbação da identidade sexual.
Quando ouvimos as soluções sexuais de cada uma dessas pessoas – que, tal como as nossas, serão sempre o arranjo possível de acordo com a história de vida de cada um - sem as considerar como “desvios” em relação às soluções tradicionais, esses arranjos afetivos passam a ser entendidos, como a solução encontrada por cada um para responder aos traumas universais da sexualidade: a existência do outro, a descoberta da diferença entre os sexos e a inevitabilidade da morte.
É o equilíbrio mais prazeroso possível entre a realidade interna e o mundo.
Nesse sentido, acho que devemos guardar o termo perversão para situações em que um individuo impõe desejos e práticas a alguém que não deseja ser incluído nesse jogo sexual – como na violação, no voyeurismo e no exibicionismo -, ou quando seduz alguém não responsável – como um menor ou um adulto com uma perturbação mental.
O sexual, o género, o desejo ou a orientação sexual estão constantemente a receber novos significados, que conduzem a diversas possibilidades de subjetivação.
Ao longo da história temos assistido a inúmeras mudanças sociais, como: os movimentos feministas, a entrada da mulher no mercado de trabalho; o aparecimento da pilula anticoncecional e a, consequente, separação entre sexualidade e reprodução; a crise da família monogâmica e heterossexual e as, respetivas, modificações da estrutura familiar, sobretudo, ao nível da perda do estatuto da referência paterna; a banalização do divórcio; a mudança do estatuto social da mulher; as politicas de defesa dos movimentos LGBTI+; a despatologização das identidades trans; o culto da fluidez sexual; etc. Tudo isto obriga-nos a um, constante, questionamento da grelha de compreensão do mundo que temos vindo a usar.
Afinal de contas, a maior das perversões não seria a crença de que somos os detentores da verdade?
Dr. Pedro Fernandes, Psicólogo Clinico e Psicoterapeuta
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