O rosto por detrás de uma máscara, por Varela Kay
Atualizado: 14 de nov. de 2023
Varela Kay, um homem que faz e fez de tudo um pouco. Ex-futebolista, modelo e empresário, escritor, músico, autor, poeta, filósofo, ideólogo e idealista, mulherista convicto, "artivista" político e dinamizador cognitivo; estudante inveterado de múltiplas disciplinas/ciências do Homem, do Mundo e da Vida.
Considera-se um homem do campo e um bicho do mato, também alquimista espiritual, encantador de demónios, amante obsceno, insanável pecador do bem, filho e servo de Deus, semi-deus dobrado em dores de um homem que ousou ser maior do que os homens e ter asas de condor; caçador de sonhos, uma obra inacabada, uma história interminável; na imaginação de quem o sonhou e na memória de quem o viu passar.
Foi alvo de uma tentativa de homicídio e ficou desfigurado por ter sido atingido com ácido sulfúrico. O autor do crime foi o ex-marido da namorada, que rejeitava a relação. Varela sofreu dores horríveis, chegando a desejar morrer, devido ao ácido que estava a corroê-lo por fora e por dentro.
Esteve em coma durante 1 mês e não se reconheceu quando acordou. A mulher nunca saiu do seu lado e foi ela que o salvou. Foi submetido a dezenas de cirurgias, mas as marcas ficarão para sempre. Ficou cego, teve de reaprender a falar, a andar e a comer.
Nos dias de hoje tem de usar uma máscara compressora 23 horas por dia, mas está agradecido por estar vivo. O agressor está a cumprir 15 anos de prisão efetiva, no entanto, Varela continua a receber ameaças de morte.
Por fim, salienta que é um "venci-dor", apenas uma sombra de si. Entre o que fez e o que quer fazer, o que foi e o que será, é-lhe difícil dizer neste momento quem é o Varela.
Nesta entrevista, abre o seu coração e explica como é viver depois da tragedia que aconteceu na sua vida.
Como se define como homem?
Como homem, além de reverenciar as belezas femininas, eu procuro entender e respeitar as mulheres, o que, intrinsecamente, resulta em doses naturais dessas três características, com especial destaque para a ousadia, pois o corpo é um templo sagrado, mas a mente quer-se saudavelmente poluída... Gosto de dar liberdade à mente para brincar e ser brinquedo.
Como define o seu percurso de vida com 40 anos?
Um vertiginoso, alucinante e centenário carrossel.
Sempre foi um homem que cuidou da sua imagem?
Fui bafejado pela sorte e privilégio de nunca ter tido de me preocupar muito com a minha imagem, talvez por isso tenha sempre valorizado e priorizado outros aspetos da minha identidade. Por outro lado, claro que sempre houve a vaidade inerente à consciência desse privilégio, então nunca descurei esse aspeto, até porque a imagem foi sempre uma importante ferramenta/complemento socioprofissional no meu percurso.
Como é que começou a sua paixão pela música?
Começou com a minha paixão pela vida. A música e a escrita são áreas indissociáveis e inatas à minha existência, e eu comecei a escrever muito cedo, fruto de uma necessidade de expressar emoções, pensamentos e dúvidas... A partir daí, transformar palavras em melodias foi só uma natural inevitabilidade. Ou não fosse africanidade sinónimo (também) de musicalidade.
O compor e a música é um refúgio para si?
Sem dúvida. Mais do que um negócio, uma arte ou entretenimento, a Música é um ancestral manifesto filosófico e espiritual. Serve um propósito maior. É onde desaguam dores e se refugia a alma.
Como é que conheceu a sua mulher?
Ambos integrávamos um grupo privado de Pensamento e Discussão.
O que o fascinou nela?
Precisamente a capacidade de me fascinar, o que é muito difícil e raro. E foram muitas as características que me conduziram a esse estado: A sua acutilância intelectual, a irrepreensibilidade linguística, a ferocidade argumentativa em debates a que assisti, o humor endiabrado, o brilhantismo profissional, a bravura do seu ativismo, o impiedoso pan-africanismo, a majestosa etnicidade e, claro, a beleza, os pés e as pernas dela [risos]. Mas o que realmente me capturou foi a projeção de princípios matrimoniais que são elementares para mim, tais como a fidelidade e o incondicional respeito por ela própria. Ela não dava espaço nem abébias aos constantes intentos de gula masculina em seu redor, e eu admirava a classe com que ela se apresentava e se mantinha uma mulher divinamente inacessível.
Como se desenvolve a sua relação?
Como um jogo elitista de mútua predação subliminar entre dois egos com um fascínio recíproco e consequentemente tesão, temperada de sapiosexualidade.
É de saber publico que ela sofria violência doméstica, como foi lidar com isso?
Sempre fui muito sensível a esse tema e quando descobri que ela era mais uma vítima desse flagelo, fui tomado por uma avassaladora necessidade de garantir que os meus braços seriam, desde esse dia e para sempre, uma fortaleza onde ela pudesse sentir-se a mulher mais segura e protegida do Mundo.
O que aconteceu no dia fatídico?
Fui regado com ácido sulfúrico numa tentativa de homicídio perpetrada pelo ex marido da minha companheira, que tencionava também matá-la nesse dia.
Do que se lembra?
De tudo. Desde o minuto em que acordei nessa manhã até ao minuto em que perdi os sentidos ao fim da tarde, engolfado em ácido, para voltar a acordar um mês depois numa UCI.
Como é encarar a sua nova realidade?
Será sempre estranho, como um filme ou um caso distante de TV, algo que "só acontece aos outros". Em suma: É um pesadelo do qual não se consegue acordar.
O Varela sendo um homem que cuidava da sua imagem, na parte estética o que lhe afetou mais?
As lesões mais profundas foram no rosto, mas fiquei ferido em toda a cabeça, pescoço, peito e braços.
O que sentiu quando se viu ao espelho pela primeira vez após o incidente?
Um desespero lancinante.
Alguma vez teve medo de ser rejeitado por parte dela?
Sim, inevitavelmente.
A parte sexual para si era e é importante?
Claro que sim, mas nunca a parte mais importante numa relação. Eu sempre vivi mais intensamente o plano mental/espiritual do que o plano físico, e é aí que reside a minha fonte de luxúria e libidinosa insanidade.
O que mudou em termos sexuais?
Fiquei mais exigente com a minha performance, já que a sexualidade é dos poucos (senão o único) aspetos da minha vida que sobreviveram à tragédia, e um dos poucos talentos que me sobraram para exercer com orgulho.
A sua libido alterou?
Não, tudo normal nesse campo.
Alguma vez rejeitou o toque pós acidente?
Sim, nos primeiros tempos o conflito interno que eu estava a travar com o meu exterior era muito violento e isso refletia-se numa repulsa autoinfligida que eu temia que a minha companheira também sentisse.
Como reagiu a sua companheira a ver a sua fisionomia pós acidente?
Por incrível coincidência, ela é cirurgiã plástica, ou seja, ver e reconstruir corpos desfeitos é "um passeio no parque" para ela.
Como foi a sua primeira vez após a sua nova realidade?
Foi terapêutico, revigorante, necessário... E muito divertido. Foi uma experiência absolutamente louca, com contornos de obscenidade hollywoodesca, depravação de alto risco e adrenalina ao rubro. Uma delícia! [risos] Não posso entrar agora em detalhes, comprem depois o meu livro e talvez fiquem a saber tudo...
Neste momento, qual o sentimento que aloja dentro de si?
Tantos. Uma profunda tristeza pelo passado recente, uma enormíssima gratidão pela existência do presente, e um petrificante medo do futuro, que, pela primeira vez na minha vida, não depende só de mim, da minha vontade, do meu esforço ou dos meus talentos.
Como é que um amor sobrevive a esta tragédia toda?
O amor só não sobrevive à falta de amor. Mas não estou apto a responder a essa pergunta. O tempo dirá...
Qual foi o seu maior ato de amor?
Não ter sucumbido à dor, não ter enlouquecido, não me ter suicidado e estar aqui, a tentar levantar-me e a esconder a real dimensão do meu abismo para poupar quem amo.
Qual a diferença do Varela do antes e dos dias de hoje?
O Varela de hoje é um homem triste, está sempre zangado, por vezes violento, até. Perdeu a paciência para tudo e todos. Não sai, não se diverte, não produz, é um criador impedido de criar, enclausurado no cárcere da sua atual condição. Mal consegue ver, mal consegue caminhar sozinho na rua, mal consegue viver... Ainda assim, vive, e todos os dias é grato por isso.
O que esta por baixo dessa máscara, que rosto?
Chocolate derretido... Perde a forma, mas continua doce [risos]. Agora mais a sério, nenhuma descrição pode fielmente retratar a violência das batalhas travadas, e cicatrizes apenas resumem uma história. Brevemente irei revelar na minha página de Instagram todas as fases deste penoso processo de reconstrução facial e, mais à frente, colocarei em livro todos os bárbaros e inacreditáveis contornos do crime que me colocou "aqui".
O amor cura?
Citando a ilustre e adorável Dra. Ana Luísa Conduto: "o amor é feito de mimos (...) que se fortalecem na construção conjunta das pessoas que somos perante nós e perante o Mundo". Posto isto, sim, só o Amor cura, na mesma medida em que a sua ausência pode matar. No meu caso, é como cantou Lauryn Hill: "it's killing me softly"...
Varela Kay, Musico
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