Introdução à (dis)função sexual na DII, por Dr. Jorge Ascenção
As Doenças Inflamatórias Intestinais (DII) são um conjunto de doenças que afetam o sistema digestivo, divididas em dois subtipos principais: a doença de Crohn e a Colite Ulcerosa. São distintas, ambas, nas suas caraterísticas clínicas, na sua extensão, bem como na progressão da respetiva doença em causa.
Habitualmente surgem, imprevistas, e sem culpas para quem as tem, de crianças a adolescentes, e de adultos mais novos a adultos mais velhos. Mas consideram-se, ainda assim, doenças “jovens”, dado que, no caso da doença de Crohn o diagnóstico acontece, em média, entre os 20 e os 30 anos, e na Colite Ulcerosa surge entre os 30 e os 40 anos de idade.
Se em Portugal já contamos com mais de 25000 pessoas que lidam com este diagnóstico diariamente, no mundo este número já ultrapassa os dez milhões.
O que nunca deixa de me intrigar é o quanto as “questões sexuais” são, na generalidade, deixadas para o lado. Seja porque não parece fazer parte dos protocolos de consulta na DII, seja porque as pessoas com estas doenças não sentem à vontade, disponibilidade, ou, eventualmente, coragem para colocar as suas dúvidas quanto a estes assuntos.
Será que por se ter uma DII se perde o direito a uma vida sexual satisfatória? Uma espécie de dupla sentença que nos calhou? Deveremos acreditar que quem tem uma doença crónica deve-se conformar com esse papel?
Além disso, se a disfunção sexual em Portugal ronda os 30% nos homens e os 40% nas mulheres, como é que seria possivel, acrescendo a isso uma DII, não encontrarmos uma prevalência maior destas questões?
São cerca de 90% as pessoas com DII que, de algum modo, lidam também com problemas de disfunção sexual.
Nomeadamente, as alterações físicas diretas que podem acontecer numa DII e que modificam a resposta sexual: fístulas, gases, incontinência, alteração da líbido, da lubrificação ou da ereção.
Ou, por outro lado, os fatores físicos que afetam a função sexual, mas de modo indireto - a fadiga, a dor localizada ou generalizada, a fraqueza muscular – que não sabemos de onde vêm, quando é que se vão, mas que irão, sem dúvida, incomodar, ou até, fazer esquecer a “vontade sexual”.
E, finalmente, mas tão importantes como os anteriores: as questões psicossociais que alteram negativamente a função sexual.
Falamos aqui da autoimagem, da autoconfiança, da autoestima, naturalmente afetadas quando nos imaginamos, ou nos vemos, apenas, ou principalmente, como doentes crónicos.
Até que ponto é que você “vê” um(a) “doente” a ter sexo satisfatório e com qualidade? E de que modo é que se vê a si mesmo(a)?
As crenças que temos acerca da sexualidade em geral, bem como as crenças que temos acerca da nossa (possível) (in)capacidade estão sempre “em jogo”. A noção de causalidade e visibilidade da doença determinam, em boa parte, o “estigma” que carregamos quando temos uma DII.
As alterações do estatuto familiar importam e fazem parte, especialmente quando estamos de “baixa” há demasiado tempo, ou quando sentimos que o nosso “lugar” na família já não é o mesmo. Então também o modo como abordamos a sexualidade no casal vai sofrer alterações.
Sem esquecer o humor depressivo, e/ou a ansiedade, reativos a todas estas questões anteriores, que afetarão aqueles que vivem com a DII, e que também condicionam o modo como se veem e como se sentem no sexo.
Todos aqueles que vivem com DII.
Independentemente da sua identidade ou orientação sexual, naturalmente. Ou acreditam mesmo que, com toda a liberdade de expressão conseguida no séc. XXI, a maior parte das pessoas já considera a bissexualidade, a homossexualidade, a transsexualidade quando discute sexo?
Então não estávamos ao início deste artigo a considerar o quanto se desconsidera o tema da sexualidade na DII? As questões LGBTQIA+ não fogem da regra neste caso…
Se se diz por aí que há quem esconda “esqueletos no armário”, aqueles há que escondem no seu “armário” uma doença da qual não são responsáveis. Ou outros que precisam até de esconder quem são, por quem se sentem atraídos e quem amam, por receio de ignorantes estigmas.
É angustiante imaginar que, a maioria, na verdade, talvez não se lembre que exista quem carregue nesse armário, em simultâneo, para além da doença autoimune, uma identidade e/ou orientação sexual diferente da sua.
E que esta falta de pertença, de sentimento de grupo, de normalização, e integração, acentua o isolamento, levanta as defesas, e impede muitas vezes que nos deixemos cuidar, e estar, com outros. De sozinhos que nos imaginamos, a sozinhos que nos deixamos ficar.
É compreensível que, se nos sentimos diferentes, e estranhos para a maioria, o modo como nos apresentamos aos outros esteja carregado de medos. Especialmente a quem não nos conheça pessoalmente, e que, por isso, não vão ver para além da doença, da sexualidade, ou outras etiquetas estereotipadas.
E nesta combinação de sermos a nossa identidade sexual, e seguirmos a nossa orientação sexual, e cuidarmos da nossa doença autoimune, não é determinante a confiança e entrega à nossa equipa médica e técnica que nos segue?
Com os responsáveis pelo tratamento e gestão da sua doença crónica não fará sentido falar de identidade e sexualidade? Os médicos, enfermeiros e técnicos que sabem mais das nossas entranhas que qualquer outro, não têm lugar no “círculo restrito” de quem sabe realmente quem somos?
É compreensível que a equipa que sabe das minhas trinta idas diárias à casa de banho, e com quem abordo frequência, consistência, e coloração das minhas fezes não possa saber acerca da minha homossexualidade, ou transsexualidade? Não compreendem a utilidade? A necessidade?
Além das questões gerais de disfunção sexual relacionadas com a DII que abordamos na primeira parte do artigo, a verdade é que o estigma social e o medo da discriminação têm um impacto determinante na saúde da comunidade LGBTQIA+.
Maior risco de doenças sexualmente transmissíveis (DST’s), mais uso e abuso de substâncias, mais questões de saúde mental, mais perturbações alimentares e doença cardiovascular, bem como maior prevalência de cancro ginecológico e colorretal, são só alguns exemplos que afetarão a evolução da DII.
Podemos assim inferir um impacto bidirecional entre a identidade e a orientação sexual de cada um, e a evolução da sua respetiva Doença Inflamatória Intestinal. Ou seja, a evolução e curso da DII terá influência direta no modo como a pessoa vive e sente a sua sexualidade e identidade, bem como estas implicarão consequências na sintomatologia e até evolução da sua DII.
Como referi inicialmente, são mais de dez milhões de pessoas no mundo com DII, cada um com a sua identidade e orientação sexual, e respetiva função (ou disfunção) sexual. O segredo?
Falar da doença, falar do amor, e falar de quem se é. Calar a repulsa e o preconceito do que se desconhece, mas que tanto se julga.
Crandall & Moriarty em 1995 referiam que “o estigmatizado fará de tudo para evitar que o seu estigma seja perturbador”. Por isso, falemos. Perguntemos.
De tantos que, na nossa vida, são a prioridade, que o primeiro da fila seja o próprio.
Dr. Jorge Ascenção, Psicólogo Clínico da APDI
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