Ana Ribeiro e um Artista aí em casa
Ana Ribeiro, tem 42 anos, lisboeta e Mãe de dois filhos, a Amélia com seis anos e o Ari, com três.
Desde adolescente que sabia que o seu percurso de vida passaria pelas artes e pela criação. Formou-se em Design de Comunicação, em Belas Artes, mas durante o curso percebeu que não ia ser feliz a trabalhar no regime de grande stress, comum às agências de design.
Começou a dar aulas e rapidamente sentiu que ensinar era algo vocacional, para a Ana. Encontrou o seu lugar no ensino, principalmente na disciplina de Expressão Plástica do 1º ciclo, onde acabou por ter liberdade total para construir o currículo que ensinava e criou autênticos laboratórios artísticos com os mais novos.
Tem um fascínio por áreas ligadas ao corpo. Da anatomia, que teve em Belas Artes, à dança tudo lhe interessava. Encantada pelas as artes começou a fazer ginástica acrobática aos vinte anos e passou para as acrobacias aéreas perto dos trinta, também teve aulas de circo, teatro físico e muita formação em dança, assim como, também, deu aulas de trapézio porque que lhe interessava particularmente a expressão individual de cada corpo quando suspenso no ar.
As artes performativas invadiram aos poucos as suas aulas de artes visuais, visto que gostava muito da ideia de diluir fronteiras, apagar rótulos do que é visual ou performático. Afinal, dança tão bem que a partir de um quadro de Miró desenha a música que se escuta.
Nesta entrevista ao Love with Pepper, Ana explica como tem sido as adversidades, a adaptação, e a realidade à sua nova vida. Desta feita, realça de como é viver com deficiência auditiva em Portugal, do preconceito e das dificuldades que esta a colocou.
Como ficou surda?
No parto do meu filho mais novo contraí uma meningite, que não foi diagnosticada a tempo. Na verdade, fui erradamente diagnosticada com uma psicose e bastante negligenciada no hospital, até perceberem que estava à beira da morte. Fiquei internada 21 dias em luta com a bactéria que me invadiu o cérebro e felizmente venci a luta, estou viva. Mas a meningite deixou-me sequelas irreversíveis. Totalmente surda e sem sistema vestibular, que é o responsável pelo nosso equilíbrio.
Fui posteriormente operada para colocação de implantes cocleares, que são um conjunto de elétrodos no ouvido interno que envia sinais ao cérebro, a partir do que é captado por microfones e computadores que trago pendurados nas orelhas. Um resumo algo simplista para dizer que sou atualmente um ser biónico, tenho uma parte de mim que funciona tecnologicamente. O ser implantada permite-me ouvir sons, mas as lesões da meningite que tive fazem com que não perceba o que são os sons. Não consigo, por exemplo, distinguir palavras se não fizer leitura labial. A minha audição é completamente artificial e muito desgastante para o meu cérebro.
Como foi a adaptação à sua nova vida?
Como é que uma pessoa que é professora de vocação, que adora conversar, fica surda?
Como é que uma trapezista ou uma bailarina fica sem equilíbrio?
Como é que alguém com pavor a dependências se vê com a autonomia tão limitada?
A adaptação não foi, claro, nada fácil. Saí do hospital um mês depois de ter entrado para ter um filho, com múltiplas deficiências, imensas limitações (mal andava, na altura), um bebé que não me conhecia e uma filha de três anos que não me reconhecia.
Mas, em situações limite, só há duas hipóteses: ou se avança ou se desiste. E desistir não faz parte da minha natureza. E, por isso, comecei a fazer diariamente todas as terapias, todos os exercícios que necessitava para voltar a andar autonomamente, treinar a audição através dos implantes, equilibrar-me na rua sozinha.
No trabalho, nas relações pessoais como foi esta nova adaptação?
Eu não voltei ao trabalho. Fiquei de baixa pois a surdez, a ausência de sistema vestibular que me faz ver tudo a tremer e os constantes barulhos internos (tinnitus) que o meu cérebro inventa, tornam-me inapta para as minhas profissões de professora ou trapezista. E isso, para mim, que adorava o que fazia, foi um golpe duríssimo. Tive que me reinventar profissionalmente. Não é adaptar, é mesmo reinventar. Pegar naquilo que sou boa a fazer (dar aulas), no que me apaixona (as artes) e incluir o que são as minhas limitações atuais (as deficiências). Se não posso ensinar as crianças posso ensinar os adultos a ensinar as crianças. Se não consigo gerir presencialmente um grupo, faço o trabalho à distância. E nasceu o meu projeto Um Artista aí em Casa, um projeto pioneiro de Educação pela Arte em Portugal, em que envio para casa das famílias, em forma de kits preparados a utilizar, o que seria um conjunto de aulas sobre um artista. Esta reinvenção profissional parte de uma palavra mágica - a criatividade - que foi o que me fez conseguir dar a volta. E é exatamente a criatividade que pretendo estimular nas crianças, com o trabalho que faço. Acho que é a mais útil ferramenta para a vida. A capacidade de criar uma solução inovadora e de valor.
A grande dificuldade da surdez é a comunicação com o outro. E aqui, nas relações pessoais, o desgaste de uma comunicação não fluída nota-se muito. Deixei de conseguir entender um grupo de pessoas e mesmo a comunicação um para um, para ser eficaz, tem de ser em ambientes sem ruído e com o interlocutor a falar mais pausadamente e de frente para mim. Perdi os eventos sociais, o prazer das conversas, os espetáculos de que era assídua frequentadora. Sou alguém mais solitário.
Alguma vez se sentiu inferiorizada em relação às outras mulheres devido à surdez?
Sinto-me, frequentemente, diferente dos outros. Não sei se inferiorizada será a palavra certa. E não é relativo a mulheres é a qualquer outra pessoa. Sinto que sou a diferente e porque é uma diferença que não escolhi e com a qual tenho de viver, é difícil.
Considera que o som é importante no ato sexual?
A audição é um dos cinco sentidos (na verdade são mais de cinco) que utilizamos para captar informação do mundo e para devolver o que somos e sentimos ao mundo, para comunicar. Um ato sexual é uma forma de comunicação/expressão e nesse sentido claro que o som é importante, para quem, como eu, ouvia e se tornou surda a dada altura da vida. A minha sexualidade nasceu e cresceu como ouvinte. No entanto, a importância dada ao som ou a palavra no ato sexual varia imenso de pessoa para pessoa, por isso é impossível generalizar. O som será muito menos importante para alguém muito visual ou cinestésico, por exemplo, para quem os estímulos sonoros contam pouco.
Provavelmente, para quem nasceu surdo, a ausência de som é irrelevante no ato sexual pois a comunicação de um surdo de nascença não passa pelo som.
Como é que a surdez interfere na sua relação com os outros?
Os obstáculos da surdez estão todos na comunicação com o outro. Não perceber o que nos é dito é frustrante, pedir sistematicamente para que falem de frente e pausadamente, para que repitam, torna a comunicação nada fluída ou agradável. O prazer inerente a uma conversa desaparece. Talvez por isso a surdez torne as pessoas mais fechadas, mais isoladas. É uma deficiência que nos deixa solitários.
Daí os surdos de nascença terem uma língua própria, não oral, e uma forma de comunicar gestual. Uma comunidade dentro da qual a comunicação e as relações são mais fáceis. Eu, sou oralizada em Português, não sei LGP (linguagem gestual portuguesa) e vivo rodeada de ouvintes. Tudo se torna mais complicado.
Depois, no dia a dia, há toda uma sociedade pouquíssimo reparada para quem é surdo. A quantidade de coisas a que não tenho acesso é gritante: atendimentos ao públicos e marcações feitas por chamada telefónica, hospitais cujo sistema de chamada é um microfone ruidoso, comunicados oficiais da televisão publica que não são legendados e esta falta de acesso é uma diminuição da minha autonomia que não é admissível.
Nas suas vivências ao nível social e afetivo com as outras pessoas, alguma vez se sentiu discriminado?
Sinto-me frequentemente discriminada. Não posso marcar uma consulta no SNS ou acompanhar um filho a um hospital, por exemplo.
Sinto-me muitas vezes à parte, por não conseguir perceber. A maioria das vezes não é intencional por quem está a comunicar. Mesmo quem está próximo (familiares, amigos) e conhece bem as minhas limitações rapidamente se esquece delas.
Relativamente às relações amorosas, acha que a surdez pode ser um obstáculo?
Se a surdez for um entrave à comunicação então sim, será um obstáculo nas relações amorosas.
Penso que, para mim, seria um obstáculo à sedução com um estranho, por exemplo.
Como vivo uma relação estável, de casal, a surdez não é um obstáculo, mas é um desafio. Traz um desgaste maior à minha relação afetiva. Mas a relação (afetiva e sexual) e o conhecimento mútuo já existiam antes da surdez aparecer. Houve toda uma adaptação à minha nova condição de surda, mas, no campo sexual, outras mudanças existiram bem mais relevantes e comuns a tantas mulheres: as gravidezes, os pós-partos, o amadurecimento da relação de casal. Isto para dizer que a surdez foi mais uma mudança nas imensas porque a vida sexual de alguém passa ao longo da vida. Porque a nossa sexualidade é dinâmica.
A sexualidade envolve os cinco sentidos. Será que a ausência de um desses sentidos aumenta a sensibilidade dos restantes e de certa maneira, torna o sexo ainda mais envolvente e satisfatório?
A ausência de audição tornou o meu olfato mais apurado mas, a nível de sexualidade, não sinto que exista uma compensação dos outros sentidos que torne a vida sexual mais interessante. O que há é uma redescoberta a outros estímulos. Que tem sempre de existir ou a vida sexual torna-se monótona.
No ato sexual, a surdez pode esmorecer o nível excitação, podia explicar como?
Se estivermos a contar com som ou palavras como estímulo sexual, diria que sim. Se falar da minha experiência nem me faz sentido a frase: a minha sexualidade é vivida numa relação estável, de mútuo conhecimento e a excitação no ato sexual tem em conta tantos outros fatores, que colocar esse peso na surdez seria tornar tudo demasiado rígido.
Considera que os preconceitos/ tabus na sociedade podem privar os surdos de uma vivência sexual plena e intensa?
Qualquer preconceito nos priva, a nós e a outros, de uma vivência da sexualidade livre. Assumir que outro é inferior por ter uma diferença ou que sou inferior por ser diferente vai condicionar as minhas relações. Mas isto é geral sobre preconceitos e não sobre surdez.
Como lida contra o preconceito?
Eu não sinto qualquer preconceito a nível de sexualidade por ser surda.
Em relação à surdez, em geral, lido falando abertamente sobre o tema, para que outros percebam as minhas necessidades e possam ajustar a comunicação.
Será que os surdos têm uma perceção positiva da sexualidade?
Não tenho conhecimento. Não conheço outros surdos em profundidade e não vejo porque terão uma perceção melhor ou pior da sua sexualidade por serem surdos. Uns sentir-se-ão realizados e felizes com o que vivem, outros não. Como os ouvintes.
O Amor vence o preconceito?
O conhecimento e a informação vencem o preconceito.
Assumir que há uma sexualidade de pessoas surdas é o mesmo que assumir que há uma sexualidade de mulheres. É uma generalização preconceituosa que tende a esquecer a pessoa que existe para além da surdez, do género, do estado civil, …
Óbvio que vamos encontrar pontos em comum na sexualidade de uma qualquer mulher (ou de qualquer surdo) mas serão muito mais os distintos que os iguais. Ou não fosse a sexualidade uma parte do ser humano tão interessante pela sua diversidade e unicidade.
Ana Ribeiro, Professora de Artes, Designer de Comunicação
Site: ana-ribeiro.pt
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