A Pedofilia numa abordagem psiquiátrica forense
A pedofilia é uma perturbação mental que ainda não é tratada como tal. Em pleno século XXI, o sexo é ainda um tema delicado e cercado de tabus e preconceitos e uma dúvida comum é se estamos a falar de uma doença mental ou de um comportamento criminal. Apesar de uma mais global abordagem do sexo, o envolvimento dessa prática com crianças desperta uma reação automática de repulsa e reprovação. Neste breve artigo tentaremos esclarecer, de uma forma informada, do que falamos quando nos referimos a esta perturbação de preferência sexual, com vista a poder atenuar o estigma que a rodeia.
A pedofilia (do grego paîs, paidós, criança) + philos, amigo) é uma parafilia (do grego παρά, para, "fora de",e φιλία, philia, "amor") e o termo é atribuído ao psiquiatra Richard von Krafft Ebing, no final do século XIX. Desde a década de 80 do século XX que têm sido investigados os fatores que podem estar na origem desta perturbação, bem como as intervenções que poderão ser adotadas para o seu tratamento. Apesar de não ser considerada uma doença mental, no sentido clássico de um conjunto de sinais e sintomas que surgem de forma a “interromper” o percurso histórico-biográfico do indivíduo, a pedofilia é uma perturbação mental e está classificada como uma perturbação da preferência sexual nas classificações internacionais das doenças e perturbações mentais, seja a Classificação Internacional de Doenças (CID, 10ª versão, 1992) da Organização Mundial da Saúde (OMS) seja a da Associação Psiquiátrica Americana (APA), o Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais, (DSM, 5ª Edição, 2013), a par do fetichismo, do exibicionismo e do sadismo.
Parafilias são preferências sexuais que não se enquadram na norma, sendo estes padrões de normalidade mutáveis com o tempo, pois são estabelecidos, em essência, pela Ciência e pela Sociedade. Perturbações parafílicas são fantasias ou comportamentos frequentes, intensos e sexualmente estimulantes, recorrentes, que duram pelo menos seis meses, período em que o individuo atuou ou foi fortemente angustiado pela presença dos desejos e/ou fantasias. São perturbações da sexualidade em que as fontes de prazer são desviantes (objetos inanimados, crianças ou adultos sem consentimento, ou o sofrimento e humilhação de si próprio ou do parceiro) e que causam angústia ou problemas com o desempenho de funções da pessoa com parafilia ou que prejudicam ou podem prejudicar outra pessoa. A pedofilia é considerada uma perturbação parafílica.
Os critérios clínicos para o diagnóstico, com base no Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais, 5ª Edição (DSM-5) da perturbação pedofílica são:
1. Fantasias, impulsos ou comportamentos sexualmente excitantes intensos e recorrentes envolvendo uma criança pré-púbere ou crianças (geralmente ≤ 13 anos) presentes por ≥ 6 meses.
2. A pessoa agiu sobre os impulsos, sofre ou sente-se significativamente prejudicada pelos impulsos e fantasias. A experiência de angústia em relação a esses impulsos ou comportamentos não é um requisito para o diagnóstico.
3. A pessoa tem ≥ 16 anos e é ≥ 5 anos mais velha que a criança que é o alvo das fantasias ou dos comportamentos (mas excluindo um adolescente mais velho que está em um relacionamento contínuo com alguém com 12 ou 13 anos de idade).
A conjuntura legal quanto ao abuso sexual de crianças como fenómeno, evoluiu significativamente acompanhando a evolução do conceito de criança ao longo dos tempos. Apenas na última metade do século XX, o abuso sexual de crianças passou a ser socialmente considerado, constituindo-se como uma matéria de relevo social. Mudanças sociais, políticas e culturais modificaram o conceito de infância, família e instituições educativas, alterando assim a forma como as crianças começaram a ser consideradas e, consequentemente, a forma como passaram a ser educadas e perspetivadas nas suas necessidades. Deste modo, também os seus direitos tiveram que ser reconhecidos e protegidos.
A lei penal condena os agressores sexuais de menores, sejam estes ou não pedófilos, sendo que a ciência médica-psiquiátrica considera a pedofilia como uma patologia, uma perturbação mental. De facto, o portador de uma parafilia, como a pedofilia, pode nunca ter comportamentos que, à luz da lei, sejam considerados crimes. De igual modo, um agressor sexual de menores (crianças) pode não ter critérios para ser identificado como pedófilo. Com a Lei 103/2015 de 24 de Agosto que alterou o Código Penal, o crime de abuso sexual de crianças consta do artigo 171º com a seguinte redação:
Abuso Sexual de Crianças
1 - Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170.º; ou
b) Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou
objeto pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais; é punido com pena de prisão até três anos.
4 - Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido
com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
5 - A tentativa é punível.
É importante delimitar o conceito de pedofilia, para que não se confunda pedófilo com o agente que incorre num qualquer crime que viola a liberdade sexual e/ou a autodeterminação sexual de um menor de 14 anos. A sociedade portuguesa não aprova a pedofilia, no entanto, o Direito, e particularmente o direito penal, não se intromete em todos os fenómenos sociológicos. O indivíduo que padece de pedofilia só viola o direito se cometer/praticar condutas tipificadas na lei. Ou seja, o pedófilo é o indivíduo que tem uma preferência sexual anómala, distinguindo-se do ofensor sexual que é aquele que pratica os comportamentos que lei considera como crimes.
A Psiquiatria Forense pode ser útil no combate aos crimes sexuais contra crianças, identificando padrões de comportamento nos agressores que estão na base do que o Direito pune por considerar serem ilícitos criminais. Assim, o objetivo é entender o papel que a Psiquiatria, quer no âmbito forense, quer no âmbito prisional, pode desempenhar, juntamente com o Direito, auxiliando no combate efetivo de crimes sexuais contra crianças. Em concreto, identificando e tratado os indivíduos com esta perturbação, evitando que estes voltem a agir de forma criminal, prevenindo a reincidência do abuso sexual de crianças. A tarefa de diagnóstico de perturbação pedofílica é na grande maioria das situações muito difícil, mas necessária para que a resposta penal seja a adequada ao agressor pedófilo e para que sejam satisfeitas as necessidades de prevenção criminal, verificando se a pena de prisão por si só (cumprimento da pena num estabelecimento prisional) cumprirá a tarefa de ressocializar o indivíduo, de o tornar apto para viver em sociedade e não reincidir na prática criminal.
Atualmente, a pedofilia é um assunto recorrente, na procura de respostas clínicas e terapêuticas e também na prevenção da prática de delitos penais. O tratamento, em âmbito prisional, de qualquer perturbação ou doença do recluso depende sempre do consentimento do mesmo e o indivíduo pedófilo condenado a uma pena de prisão deverá ter um acompanhamento personalizado na execução da mesma, uma vez que “o plano individual de readaptação é elaborado pelos serviços responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena, com a participação dos serviços de vigilância e segurança e dos serviços clínicos” (artigo 69º, n.º 3 da Lei 51/2011 de 11 de Abril). A pedofilia não se manifesta igualmente em todos casos, sendo decorrente de um contexto histórico e psíquico individual, o que implica uma maior dificuldade em traçar um perfil único do pedófilo, sendo imprescindível conhecer as suas diversas formas, no sentido de ser planeado o tratamento mais adequado.
Tradicionalmente a Psiquiatria Forense, ao reportar-se à questão da inimputabilidade penal do agente, sustenta que se deva dar particular relevo às anomalias psíquicas consideradas como doenças mentais, sendo que as denominadas doenças da vontade e personalidade antissociais não são consideradas, pois ao não afetarem a inteligência e os processos cognitivos onde se funda a vontade do indivíduo, não excluem a culpabilidade deste. Mesmo considerando que se trata de uma patologia, o pedófilo preserva o entendimento de seus atos e a capacidade de os avaliar como criminais, não possuindo, por isso, critérios médico-legais psiquiátricos para um parecer de inimputabilidade. O facto de a pedofilia ser uma patologia, uma perturbação mental, não significa que o pedófilo não deva ser punido. Mas, após o cumprimento da pena, ele geralmente reincide. Será por isso imprescindível proceder a um tratamento, ainda que na prisão. O problema é que ele não procura voluntariamente ajuda especializada, porque a patologia não lhe causa incómodo e geralmente não sente culpa ou remorso pela prática de seus atos, podendo mesmo imputar a autoria destes à sedução desenvolvida pela criança. Existe também a perceção que grande parte dos indivíduos pedófilos possui a capacidade de se autodeterminar. Contudo, admite-se a possibilidade de existência de desequilíbrio entre a capacidade psicológica de autocontrole e a intensidade dos impulsos. No entanto, será sempre questionável, no ordenamento jurídico português, um parecer psiquiátrico forense de imputabilidade diminuída, de acordo com o previsto no artigo 20º, n.º 2, do Código Penal:
Artigo 20.º
Inimputabilidade em razão de anomalia psíquica
1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída.
3 - A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior.
4 - A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto.
Ao ser diagnosticado, o sujeito pedofílico deveria receber tratamento, quer mediante psicoterapia individual ou em grupo, a longo prazo, e/ou com psicofármacos que possam ter uma ação na inibição da compulsão sexual. Não existem comparações rigorosas da ação de diferentes fármacos, ou mesmo recomendações sobre quais os indivíduos que podem vir a beneficiar mais com uma ou com outra intervenção, ou com ambas, psicoterapia e psicofármacos. De igual modo, não existem estudos que demonstrem maior ou menor benefício com estes últimos. Os resultados do tratamento variam, sabendo-se que os melhores resultados são os provenientes de uma participação voluntária. No entanto, ainda que o indivíduo possa ter pretendido obter ou ter mesmo procurado ajuda antes da prática do ato criminal, no contexto atual de repressão social da pedofilia, o tratamento é apenas procurado após a detenção, mostrando-se quase sempre ineficaz. A simples aplicação de uma pena de prisão, ainda que por um longo prazo, não inibe os desejos e fantasias dos indivíduos com perturbação pedofílica. Por outro lado, pedófilos presos que são submetidos e monitorizados com uma intervenção terapêutica a longo prazo, podem deixar de praticar a atividade pedófila e ser reinseridos na sociedade.
Sendo a perturbação pedofílica classificada como uma perturbação mental e por isso, passível de uma intervenção terapêutica, a reação de repugnância e de aversão social que invariavelmente causa, evita que os portadores desta patologia procurem ajuda. A criação de uma organização específica direcionada a orientar estes indivíduos para um tratamento precoce, onde estes se possam sentir-se seguros e anónimos, preveniria assim a prática de crimes de abuso sexual de crianças. Enquanto o estigma social enraizado prevalecer, estes indivíduos apenas continuarão a ser identificados após a prática do ato criminal e a ser sujeitos a penas de prisão, as quais sem o devido tratamento só servirão para adiar a reincidência criminal decorrente desta perturbação mental.
BIBLIOGRAFIA
American Psychiatric Association (2014). DSM-V: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (5ª Ed Revista). Lisboa: Climepsi Editores.
Organização Mundial de Saúde (1993). Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID 10. Porto Alegre: Artmed Editora.
Código Penal Português, acedido a 04/03/2021
A Pedofilia no Ordenamento Jurídico-Penal, Tese de Mestrado Forense, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Inês Margarida Bago de Uva de Almeida Lopes, Outubro de 2017, acedido a 04/03/2021
Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, acedido a 04/03/2021
Pedofilia: doença ou crime? Um estudo acerca da (in)imputabilidade do pedófilo, Regina Alves Andrade, maio de 2020, acedido a 04/03/2021
Lei da Saúde Mental, acedido a 04/03/2021
Pedophilia Is a Mental Health Issue. It's Still Not Treated as One. Shayla Love, August 24, 2020, Dissertação de Mestrado, acedido a 04/03/2021
Dra. Susana Pinto Almeida, Psiquiatra Forense
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